Diversidade racial e inclusão: um desafio que vai além da Lei de Cotas

 

No 10º aniversário da Lei de Cotas, alunos negros ainda se sentem excluídos da universidade e docentes pedem por uma educação antirracista.

Por Lívia Salles e Isabella Garcia

colagemColagem ilustra as diferentes tonalidades da pele negra. Flash Idea: Black Story

Em 2022, a Lei de Cotas completa 10 anos promovendo a democratização do acesso às universidades federais para populações socialmente vulneráveis. Com isso, metade das vagas devem ser preenchidas por candidatos provenientes de escolas públicas, sendo que um quarto delas está reservado para autodeclarados pretos, pardos ou indígenas, segundo os critérios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

A Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), que já aplicava critérios de seleção para alunos economicamente vulneráveis em 2008, possui, atualmente, por volta de 3.500 alunos que entraram através da Lei de Cotas, segundo dados fornecidos pela Pró-Reitoria de Graduação, representando cerca de 26% do total de ingressos nos cursos de graduação.

Contudo, inserir os alunos na universidade não significa necessariamente incluí-los, por isso, a Lei de Cotas sozinha não garante que esses estudantes, que enfrentam diversos desafios causados pelo racismo estrutural da sociedade brasileira, se sintam pertencentes a esse espaço que é deles por direito.

Paulo Roberto de Oliveira, docente do Departamento de Ciências Econômicas e da pós-graduação em História da UFOP, é também tutor do Programa de Educação Tutorial (PET), no qual trabalha em um projeto que tenta entender sobre a formação social brasileira e de que forma os preconceitos enraizados na sociedade, como racismo e machismo, chegam no ambiente acadêmico. Ele comenta: “A universidade deixou de ter aquela cara convencional que se esperava, que era um lugar de elite, mas só o acesso das pessoas na universidade não garante que ela deixe de produzir o racismo que tem na sociedade, porque as pessoas entram em uma estrutura que é para ser conservadora e, por isso, os alunos negros e as alunas negras, quando chegam a esse espaço, vão se deparar com um ambiente que não está preparado para recebê-los”.

As falhas na inclusão: o caso de blackface na UFOP

protesto contra racismoAto de protesto contra o episódio do blackface no campus Morro do Cruzeiro - Foto: Giulia Pereira/Agência Primaz

Um exemplo para a falta de preparação desse espaço para receber os alunos negros foi o episódio ocorrido em abril de 2022, o  caso de blackface ocorrido em uma tradicional festa do sistema de repúblicas da UFOP, a “Miss Bicho”, que ganhou repercussão nacional e os estudantes cobraram um posicionamento da instituição.

Em nota, após o ocorrido, a reitoria da universidade reafirmou o posicionamento da instituição contra qualquer ato que se configure de cunho racista ou de qualquer outro tipo de discriminação, garantindo estar comprometida com o desenvolvimento social e respeito à diversidade. Assim, o caso foi encaminhado para os setores responsáveis para apuração e uma posterior consequência aos envolvidos.

Para a estudante do segundo período de Artes Cênicas da UFOP, Klevilaini Alves dos Santos, 19 anos, “quando acontecem casos de racismo na universidade, poucas pessoas são levadas a sério e aí acaba que, no final das contas, não tem nada que foi concluído e nenhuma medida foi tomada e entra no mar de esquecimento”.

Outros estudantes cotistas também opinaram sobre o episódio do blackface. Larissa Gabriela de Araújo, 20 anos, graduanda em Pedagogia, disse que “Isso [o caso de blackface] fere aos estudantes negros, inclusive me feriu, me deixou com vergonha da universidade”.

Já o aluno do terceiro período de História, Maycon Alves Souza Guimarães, 20 anos, acredita que “racismo é algo que deve ser combatido severamente, claro, diante da lei, e a UFOP, infelizmente, não toma a atitude concreta de punir essas pessoas que cometeram esse crime”. Ele continua: “seria preciso uma resposta rápida e eficaz, veja bem, quando vai passando e as pessoas não veem uma resposta, as pessoas vão se sentindo no direito de serem racistas, porque não tem punição”.

O pró-reitor adjunto de Graduação da UFOP, Adilson Pereira dos Santos, manifestou sua opinião sobre o caso: “A primeira sensação que eu tenho diante de um evento desse é da nossa insuficiência, da nossa falência enquanto instituição capaz de educar as pessoas para as relações raciais. Porque as justificativas, razões que as pessoas buscam para explicar esse fenômeno revelam essa nossa  incapacidade, falência, falhamos, falhamos fortemente em não dar conta dessa educação para as relações sociais.”

Ele continua contando sobre as justificativas apresentadas pelos estudantes envolvidos na acusação de racismo: “Eu tive a oportunidade de conversar com as pessoas diretamente envolvidas nisso, por isso, tenho uma dificuldade de falar e, assim, a naturalidade em que elas buscam, as pessoas buscam justificar esse fenômeno, revela isso, revela a nossa ignorância, a nossa incapacidade de enfrentar uma coisa tão grave, tão séria da forma como deveríamos. Numa conjuntura em que em todo lugar do mundo está se discutindo o antirracismo.” 

Universidade para quem?

O caso de blackface serviu como ponto de reflexão para todos os estudantes negros da UFOP. Ao cobrarem medidas mais efetivas, eles também começaram a pensar sobre a questão do pertencimento ao ambiente acadêmico.

A aluna de Artes Cênicas ressalta: “Sinto que, às vezes, aqui não é o meu lugar por não ver tantas pessoas iguais a mim, por ver pessoas negras que entram na universidade, mas aí não conseguem se formar, que acabam saindo do curso por não ter um apoio da própria universidade, sabe?”, diz Klevilaini.

Já Maycon, em concordância com a outra estudante, fala sobre a vontade de ver colegas negros, como ele, se graduando na UFOP: “Sendo bem sincero, me sinto muito feliz de estar aqui, ocupando esse espaço na universidade que por muito tempo, e ainda atualmente, isso não é realidade para a maior parte das pessoas, então, me sinto muito feliz de poder realizar todas as atividades, mas o que eu lamento é que eu queria ver mais jovens assim como eu estando aqui e que lamentavelmente não podem”.

Por uma educação antirracista

Acontecimentos como o caso de racismo citado e o depoimento dos alunos cotistas, revelam que há uma defasagem no letramento racial promovido pela universidade pública que deveria formar pessoas aptas a contribuir para uma sociedade mais igualitária. Para que esse debate seja de fato inserido na sala de aula, é fundamental que um novo currículo seja  pensado.

O professor Paulo Roberto opina: “Para que essa discussão seja incorporada, ela precisa ser vista como importante para a formação dos mais diversos profissionais, porque a gente não forma só profissionais para o mercado, mas profissionais que vão para o mercado com uma visão de mundo que seja minimamente mais solidária. Eu sou professor de universidade pública acreditando nisso.”

Ao se pensar em uma educação antirracista, os docentes entrevistados ressaltam a necessidade de uma bibliografia decolonial, ou seja, referências de autores diversos e não apenas os clássicos autores brancos e europeus, que representam pensamentos muitas vezes arcaicos acerca dos problemas sociais. "Não adianta só a gente receber as pessoas negras na universidade e continuar usando como referência autores europeus que são notadamente racistas, olhar para o mundo a partir de uma Europa branca e patriarcal. Então, a gente tem que discutir isso nos diferentes cursos, para que diferentes pessoas se sintam contempladas, e não mais uma vez sejam tratoradas por esses discursos que tentam homogeneizar o mundo, e dizer que não existe racismo.", defende o docente Paulo Roberto.

Vercio Gonçalves é professor do Departamento de Letras da UFOP, trabalha com temas sociais em suas aulas, promovendo o debate e a reflexão entre os alunos. “Pensando em uma educação antirracista a gente precisa pensar necessariamente em referenciais, né? Seja pensando em educação básica, como vamos pensar a escolha desse material? Quais são os autores que eu vou trazer pra sala de aula? Na universidade devemos trabalhar com o pé fincado na diversidade no âmbito da educação, eu acho que a educação precisa ser e deve ser focada na diversidade, porque é a diversidade que educa.” – ele diz.

Paulo Roberto ainda enfatiza que, para que o assunto do racismo seja levado a sério, discursos de democracia racial e meritocracia devem ser postos de lado, para compreender que o Brasil é um país nitidamente racista desde a sua origem e, a partir dessa concepção, o debate serve para promover uma consciência antirracista coletiva.

Corpo docente e o corpo de quem educa

No Brasil, a Lei 12.990/2014 assegura a reserva de 20% das vagas nos concursos públicos a candidatos negros. De acordo com o pró-reitor de Graduação da UFOP, Adilson dos Santos, a lei está sendo aplicada na universidade e contribui para a diversidade étnica dos servidores, e isso, do ponto de vista simbólico, contribui para que alunos e alunas se sintam mais representados.

Os professores Paulo Roberto e Vercio se autodeclaram homens negros, e nas disciplinas que lecionam, se encarregam de abordar questões étnico-raciais. “Quando nós chegamos nesse lugar, temos uma responsabilidade enorme, a responsabilidade de desconstruir o que muita gente ainda acredita, ‘olha eles chegaram, então, é possível’. A gente chegou ultrapassando uma série de obstáculos, porque não há um caminho aberto, precisamos desconstruir isso”, diz Paulo, explicando como a sua presença na sala de aula pode ser vista por um viés meritocrático.

O professor Vercio, por sua vez, ressalta que a diversidade dos docentes é produtiva para a discussão da diversidade: “Meu corpo educa. Meu corpo, que é fora da curva em vários sentidos”. O pró-reitor adjunto de Graduação, Adilson, complementa: “Do ponto de vista simbólico, ter um professor negro pra quê? Para o menino que também ingressa na condição dele é um aspecto simbólico que tem um valor importante”.

No entanto, todos os educadores concordam que a discussão desses temas não é papel apenas dos docentes negros. A esse respeito, Paulo diz: “Um professor branco pode ser um aliado, mas sabendo que esse processo e esse espaço, e essa caminhada para chegar até esse espaço, é protagonizada por nós. Essa articulação é necessária de uma maneira que não exclua. O racismo na nossa sociedade brasileira ultrapassa a população negra, é uma questão muito mais ampla, e a população negra tem que ter o auxílio da população que historicamente foi privilegiada, que é a população branca, mas com sensibilidade.”

Outras medidas que geram inclusão

Cotas raciais, bibliografia decolonial, mais pessoas negras ocupando a universidade foram algumas das estratégias apontadas para implementar uma educação antirracista. O que mais pode ser feito? O pró-reitor adjunto de Graduação da UFOP informou que, recentemente, foi aprovado, no projeto pedagógico dos cursos de engenharia, a obrigatoriedade de abordar questões sociais. Ele vê a iniciativa com otimismo, mas ressalta que a universidade deve oferecer condições materiais para que isso aconteça, como vaga docente para tratar diretamente desses assuntos.

Ele também defende que a política de cotas seja adotada para as moradias estudantis federais, como é o caso de uma das repúblicas acusadas de racismo no episódio do blackface. Na sua visão, se as pessoas negras também estivessem em grande número nessas moradias, haveria menos casos de racismo. Reitera, por fim, que o caso foi encaminhado para uma comissão especializada, medidas cabíveis estão sendo discutidas e, até o momento de conclusão, será mantido em sigilo, mas garante que há uma preocupação com o fato ocorrido, portanto, punições ainda estão sendo discutidas, e quando tomadas, virão a público.

O professor Vercio acredita que disciplina “Leitura e Produção de Textos”, ofertada pelo Departamento de Letras e, atualmente, lecionada por ele, ajudaria a levar esses debates para todos os cursos da UFOP, sugerindo que a disciplina fosse obrigatória nas diferentes matrizes curriculares. Já o aluno Maycon propõe que a universidade promova atividades voltadas para a comunidade externa, levando informações aos potenciais candidatos das ações afirmativas. De acordo com Adilson, essa medida já está sendo implementada pela universidade.

Conheça os projetos da UFOP que trabalham o tema

PET ICSA: https://www.instagram.com/peticsa/

Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI): https://neabi.ufop.br/