Do Pacaembu à Chácara Santana: a distância na preparação para o Enem que vai muito além da geográfica

Como a diferença entre as rotinas de Vitória, de 18 anos, estudante de escola da rede pública, e Rafaela, 17, do ensino particular, pode evidenciar o abismo na preparação para os vestibulares na pandemia

Por: Catarina Pimenta e Luísa Baraldo

Imagem Ilustrativa: https://pixabay.com/Rafaela mora no Pacaembu, bairro localizado em área central e nobre de São Paulo, ao mesmo tempo que Vitória vive no Chácara Santana, Zona Sul da cidade, com sua mãe. As duas, naturais do Estado de São Paulo, estão cursando o terceiro ano do ensino médio e acabaram prestando o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) no ano de 2021. Elas também usaram o período pandêmico para se prepararem para o vestibular. Entre a residência das estudantes há uma distância de cerca de 22 quilômetros, mas a separação entre elas transcende muito mais que a barreira física, evidenciando várias desigualdades no contexto educacional de São Paulo.

Cotidiano Desigual

A disparidade entre as duas alunas começa na rotina. Enquanto Vitória leva um tempo médio de 20 a 30 minutos no transporte público para chegar ao local em que estuda, a Escola Estadual Antonio Manoel Alves de Lima, Rafaela leva cerca de 15 minutos para chegar ao Colégio Renascença, localizado próximo a Marginal Tietê, onde vai de Uber ou de bicicleta alugada.

Ao chegar à escola, cujas atividades presenciais retornaram de forma híbrida no começo do ano, Rafaela tem aulas seguindo o Sistema de Ensino Poliedro, no qual se dedica o último ano apenas para uma revisão focada nos vestibulares. O sistema é dotado também de apostilas bimestrais com exercícios das mais diversas provas do país. Já na escola estadual onde estuda, Vitória conta que apenas teve uma última semana de aulas dedicadas à preparação do Enem, além de ter tido também alguns sábados letivos de revisão para o vestibular, que veio ao currículo exclusivamente por iniciativa dos professores, mas ela e muitos outros alunos não conseguiram participar pela proximidade com os Exames e pela falta de divulgação da própria escola. A aluna também não tinha nenhum material focado em exercícios de vestibulares, tendo que assistir aulas e conteúdos por conta própria e diretamente da internet. 

Sonhos e como buscam alcançar

Vitória busca alcançar com o ensino médio o curso de design gráfico. Sua mãe é empregada doméstica e uma das maiores incentivadoras dos estudos da filha. A garota conta que, com a pandemia, a mãe enfrentou muitos problemas no trabalho, já que pelas medidas de distanciamento social muitas famílias dispensaram seus serviços ou pediram para que as faxinas fossem feitas em horários difíceis de se conciliar, para que a família não estivesse em casa. No entanto, a garota conta que a mãe sempre continuou a encorajá-la a estudar, não deixando-a esquecer dos estudos durante o período pandêmico. Além disso, ela se autodeclara como preta, reconhecendo a extrema importância da ocupação desses locais e assim valoriza a importância do uso das cotas raciais, algo que ela irá fazer no Sistema de Seleção Unificada (SISU), programa responsável pela seleção de vagas a partir da nota do Enem.

Rafaela quer cursar economia, ela diz que  o Enem, em si, não é sua preferência, pois busca ficar em São Paulo, tendo então prestado vestibulares como Mackenzie e Fundação Getúlio Vargas, universidades com mensalidades entre R$ 2,8 mil  a R$ 5.550 mil, respectivamente. Ela também prestou vestibulares em instituições públicas como a Universidade de Campinas (Unicamp) e Universidade de São Paulo (USP), além de ter feito o Enem como uma outra opção para entrar na faculdade.

Ela mora com os avós, os quais são grandes exemplos para ela. Seu avô já trabalhou na Organização das Nações Unidas (ONU), sendo agora aposentado, e sua avó é professora na área da psicologia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Ela é branca, dessa forma, não faz uso de nenhum tipo de cota racial, estando assim na parcela de 41,4% dos participantes do Enem, grupo o qual cresceu consideravelmente em 2021, segundo dados do próprio Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão responsável pela organização da prova.

Desigualdade Geográfica

A entrevistada mora em uma casa na região central da cidade de São Paulo com mais três pessoas, no distrito Consolação, o qual segundo dados divulgados pela Rede Nossa São Paulo, no Mapa da Desigualdade, ocupava o 9º lugar no ranking de melhores distritos para se morar em 2021. A residência, própria dos avós, possui seis quartos, sendo dois deles usados como escritório e um individual, para a neta. 

A estudante conta que dentro do seu quarto usa uma escrivaninha para realizar seus estudos, além de acessar suas atividades da escola através de um notebook e celular próprios. Rafaela diz ainda que seus avós possuem terrenos alugados na cidade e uma casa em Indaiatuba, a aproximadamente cem quilômetros da capital, para onde viajam nas férias frequentemente.

Vitória mora de aluguel no Chácara Santana, distrito pertencente ao Jardim São Luís, que não aparece no ranking da mesma pesquisa. Divide o quarto com a mãe e relata que, no cômodo, há uma prateleira onde ela coloca seus livros. “Foi sorte”, descreve Vitória, pelo fato de a mãe ter comprado um computador no começo da pandemia, que serviu de grande ajuda para a realização de trabalhos e acesso às aulas no formato online. A aluna prefere o período da tarde para estudar, pois sua casa é colada às outras da vizinhança, o que aumenta o barulho, algo que não é  recorrente nesse horário já que seus vizinhos estão trabalhando.

Contrastes

Ao chegarem da escola, as meninas usam o tempo para fazerem as atividades e trabalhos passados na manhã, além disso Vitória costuma conciliar os estudos do ensino médio com os do vestibular, buscando dicas de redação e de conteúdos com blogueiros e na internet. Ela também gosta de ler, ouvir música, além de estar escrevendo um livro no tempo livre. Um dos seus passatempos também é aprender idiomas. Ela conta que nunca fez curso de inglês, mas busca aprender o idioma de maneira autônoma. Além disso, um dos seus sonhos é fazer intercâmbio para o Japão para conhecer novas culturas. 

Rafaela, após fazer os trabalhos da escola, vai para a academia, e nos finais de semana ela sai com os amigos para bares e festas, a maioria localizados em Higienópolis e arredores. Além disso, a garota gosta de viajar nas férias com colegas e já visitou alguns países do exterior com a família, algo que foi facilitado pelo trabalho do avô. Ela também já fez curso de inglês, mas hoje em dia não continua mais.

Desorganização do ENEM

É possível notar também, os confrontos diante de problemas organizacionais do Enem, os quais foram agravados com a pandemia. Uma das polêmicas que teve grande repercussão foram as recentes falas do ministro da educação, Milton Ribeiro, em que ele diz que a “universidade deveria ser para poucos”, dessa forma o órgão também demonstra essa posição ao tentar limitar a isenção na taxa do Enem, algo que só foi revogado após uma liminar do Supremo Tribunal Federal (STF). Há também o fato de que, o censo do Enem 2020 não foi divulgado, esta pesquisa é responsável pela divulgação da renda dos participantes, dos faltantes e dos aprovados, o que leva a um questionamento acerca de uma possível omissão do órgão sobre o quão abrangente o exame foi ou deixou de ser no ano da pandemia.

Renda Familiar

O contraste entre as duas realidades também está inserido na renda familiar. De acordo com o Mapa da Desigualdade de São Paulo, estima-se que a região da Consolação possui uma remuneração média mensal de R$ 4,4 mil a R$ 7.620 mil. No distrito do Jardim São Luís, o salário médio não passa de R$ 4,4 mil. Vitória conta que utilizou do Auxílio Emergencial disponibilizado pelo Governo federal durante o período pandêmico, que foi crucial para que não faltasse nada em sua casa quando sua mãe estava impedida de trabalhar por conta da quarentena. Ela afirma também que recebe pensão do pai e é assistida pelo Bolsa Família, o que complementa a renda gerada pelas faxinas da mãe. Já a situação financeira de Rafaela é mais tranquila, além da sua avó ser professora universitária e seu avô aposentado, seu pai também participa da renda pagando apenas parcialmente seus gastos, o que a faz nunca ter contado com nenhum auxílio ou bolsa governamental.

Pandemia e alguns efeitos

Em relação aos efeitos psicológicos e emocionais causados pela pandemia, Rafaela diz que sua postura como aluna decaiu, a exemplo de suas faltas na escola terem aumentado. Afirma que começou a sair para casa de amigos, a partir de setembro de 2020, por questões psicológicas. Já Vitória descreve que a pandemia mudou sua personalidade, de maneira a tornar-se, segundo ela, uma pessoa mais prática e decisiva. Relata que 80% de sua individualidade foi moldada por esse período. A garota relata também que se sentiu muito insegura no começo das aulas por ter medo dos colegas não respeitarem as medidas sanitárias, mas que começou a se sentir mais segura depois de voltar a  se acostumar a sair de casa.

Apesar da rotina de estudos realizada durante o ano, Vitória não se sentiu tão segura para a prova de exatas. Além de já ter dificuldades nessa área, diz que a pandemia prejudicou seu desempenho. Já Rafaela relata que conseguiu desenrolar bem a prova de humanas, mas a de exatas realizou apenas metade e acabou desistindo. Conta também que se sentiu pouco preparada no quesito de relembrar os conteúdos estudados. Uma pesquisa realizada pelo Conselho Nacional da Juventude (Conjuve) aponta que apenas 26% dos jovens se sentem preparados para realizarem o Enem, quantidade que foi reduzida quase pela metade, levando-se em conta o levantamento realizado no ano passado em que 44% dos jovens se sentiam preparados.

Por fim, a partir dos  contextos vividos pelas estudantes Vitória e Rafaela, é possível escancarar as portas dos porquês na preparação dos jovens ao Enem e, além disso, notar o contexto social por trás do motivo de apenas 3,1 milhões de pessoas se inscreveram para o Enem de 2021, que registrou o menor número de inscritos desde 2005. Além disso, questiona-se também a razão desse número ser maior entre pardos e pretos, que registraram uma redução de 52% entre os inscritos.  Por fim, fica o pensamento latente do porquê há um eco tão grande entre a disparidade social e as oportunidades de preparação dadas aos jovens na entrada na faculdade pública.