A secular rixa ouro-pretana entre os dois bairros mais tradicionais da cidade se manifesta até hoje.
Por: Carolina Lobo e Marcelo Gonçalves
Praça Tiradentes, linha imaginária que divide o lado dos jacubas (à esquerda) e dos mocotós (à direita) - Ouro Preto, MG.
Foto: Marcelo Gonçalves.
Desconhecemos quem discorde da beleza da Praça Tiradentes, em Ouro Preto. Cercado por museus ricos de cultura e embelezado pela estátua de Tiradentes, símbolo da Inconfidência Mineira, o coração da cidade é, para os turistas, regado de história e arquitetura, mas, para os moradores, uma zona neutra em meio a uma rixa secular.
No Século XVIII, dois maiores arraiais de uma região, o arraial do Antônio Dias e o arraial do Ouro Preto (Pilar), tiveram que se unir para formar uma única vila, que ficou conhecida como Vila Rica, hoje Ouro Preto. A partir de então, uma disputa divide o centro histórico ouro-pretano em dois lados, o dos Jacubas, moradores do Bairro Antônio Dias, e o dos Mocotós, moradores do Bairro Pilar, sendo a Praça Tiradentes, antigo Morro de Santa Quitéria, a linha - imaginária - que divide ambos.
E não seria uma surpresa, principalmente tratando-se de Ouro Preto, cidade com forte tradição religiosa, que o pavio disso tudo fosse justamente relacionado às belas igrejas da cidade. A historiadora Terezinha Lobo Leite conta, em seu livro “Ouro Preto: o encanto de seus contos”, que, de acordo com a tradição, tudo começou quando um importante coronel mandou vir de Portugal a imagem de Nosso Senhor dos Passos, que destinava-se à Matriz de Nossa Senhora da Conceição, no Bairro Antônio Dias.
Rua Bernardo Vasconcellos (antiga rua Direita do lado Jabuba), a mais antiga rua de acesso ao bairro Antônio Dias - Ouro Preto, Mg. Foto: Carolina Lobo
Um burrinho ficou encarregado de fazer o transporte das figuras do Rio de Janeiro para Ouro Preto e, ao chegar na cidade e se deparar com os dois caminhos possíveis que poderia seguir, partindo da praça Tiradentes, o animal empacou. Assim, os moradores dos dois lados da vila decidiram, por bem, deixar a sorte resolver à qual deles a imagem viria a pertencer. E, para a tristeza dos jacubas, o burrinho escolheu os mocotós, seguindo rumo a Matriz do Pilar.
Básilica de Nossa Senhora do Pilar, localizada no bairro Pilar (Mocotó), onde se encontra a imagem de Nosso Senhor dos Passos - Ouro Preto, MG.
Foto: Júlia Coelho
Nisso, deu-se início a confusão entre os dois lados da cidade de Ouro Preto. Fez-se um acordo de que, uma vez ao ano, a imagem do Senhor dos Passos iria para a Matriz do Antônio Dias, permanecendo por lá uma noite e retornando no dia seguinte à Matriz do Pilar. Caso chovesse por três dias seguidos, enquanto a imagem estivesse sob domínio do Antônio Dias, ela ficaria definitivamente na matriz.
Essa rixa religiosa saiu das paredes das igrejas e se estendeu ao cotidiano da cidade. “É muito divertido. A gente brinca. Hoje não são palavras agressivas, mas são palavras de brincadeira, [ditas] quando nós recebemos o pessoal do Mocotó”, afirma Deolinda Alice dos Santos, consultora de cultura mineira e nascida jacuba - com muito orgulho. Ela contou que, atualmente, a rixa entre os dois bairros, em si, adquiriu um caráter de zoação e brincadeira, ao contrário do que acontecia antigamente. “Eu vivencio, brinco e me divirto com as pessoas que moram do lado de lá e fico muito feliz quando eles passam por aqui, (...) eu gozo a cara deles (...) e eles morrem de rir, [dizendo]: ‘me dá licença que eu sou mocotó mas eu adoro esse povo do lado de cá, da jacuba, que é um povo mais alegre, mais extrovertido’”. Deolinda destaca, ainda, outra diferença em relação aos mocotós: “Nós somos bem mais livres na fala, nós não nos preocupamos muito com a sociedade, sabe? Aquele charme social; a gente quer ser feliz”, completa.
Deolinda Alice dos Santos, jacuba e consultora de cultura mineira e sua cadelinha Maria do Carmo, em frente ao Santuário Arquidiocesano de Nossa Senhora da Conceição, no Bairro Antônio Dias, Ouro Preto - MG. Foto: Marcelo Gonçalves
O Zé Pereira é jacuba?
O tradicional carnaval ouro-pretano também é alvo de desentendimentos, frutos da rixa entre jacubas e mocotós. Isso porque o Zé Pereira dos Lacaios, o bloco carnavalesco mais antigo do Brasil, tem, há mais de 70 anos, sua sede no Bairro Antônio Dias - apesar de já ter se estabelecido no Pilar também -, sendo visto, por muitos, como um jacuba de carteirinha. Arthur Ramos, presidente do Zé Pereira, afirma que “tem rixa sim. Tanto é que quando tem reunião de carnaval, costuma dar confusão”. Ele disse que, há cerca de quatro anos, houve uma confusão entre o Zé Pereira e os demais blocos ouro-pretanos, principalmente aqueles pertencentes ao bairro “mocotó”.
Na época com pouca verba, a Prefeitura de Ouro Preto decidiu que ajudaria, para a realização do carnaval, apenas o Clube dos Lacaios, por ser o bloco mais tradicional da cidade. “Nossa, o pessoal arrumou uma confusão, principalmente os blocos que eram do lado de lá [do Pilar] falando que só o Zé Pereira que existe aqui, que o resto não precisava sair mais, que só o Zé Pereira ia fazer o carnaval… mas eu sinto que é por isso, por essa questão de rixa”, conta Arthur.
Entretanto, não só de carnaval vive Zé Pereira, não é mesmo? Dona Deolinda - ou “Diulinda”, no “mineirês” -, como é conhecida no bairro, conta que, nos dias em que o clube desfila, fora da época carnavalesca, muitas famílias moradoras do Bairro Pilar, principalmente com filhos, vão até o Antônio Dias para acompanhar o bloco em todo seu trajeto, até a praça Tiradentes. A historiadora ainda completa que o cariá (diabo) mais antigo do Zé Pereira, Roque, é mocotó, mas “vem todo feliz participar do Zé Pereira, e a gente o recebe com muito carinho”.
A Semana Santa
Imagem de Nosso Senhor dos Passos, que originou o a lenda do Conto do Vigário e que tradicionalmente sai em procissão nas festividades da Semana Santa. Está localizada na Basílica de Nossa Senhora do Pilar, Ouro Preto - MG. Foto: Júlia Coelho
A história ouro-pretana não nega: a rixa, que começou por questões religiosas, mantém, ainda, essa essência. Hoje, o aspecto religioso continua sendo um dos motivos que mais demonstra a divisão entre jacubas e mocotós. Tradicionalmente, a Semana Santa é celebrada de forma alternada: nos anos pares, a Paróquia de Nossa Senhora do Pilar fica encarregada de organizar as celebrações; nos anos ímpares, essa função fica a cargo da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, do Antônio Dias.
O Ministro da Ordem Terceira de São Francisco de Assis, Mauro Amorim, jacuba de nascimento, conta: “Era como ainda é hoje, essa procissão que é no sábado que antecede o Domingo de Ramos: a imagem que até então pertence a Paróquia do Pilar, vem uma vez ao ano aqui na nossa paróquia, e muitas pessoas ainda tem essa rivalidade. Algumas pessoas do lado do Pilar acompanham a procissão até a praça e de lá voltam para casa, nem desciam no Antônio Dias. Por vezes, estamos acostumados a ouvir aquela crítica, aquela picuinha pequena ‘cuida bem do meu santo’”.
Deolinda ainda completa: “Um cutuca o outro e fala assim - ‘olha, nós não vamos devolver ele não (risos)’ - e eu acho engraçado que tem várias pessoas que fazem o ‘pai, filho, espírito santo’ (sinal da cruz) e fala assim: ‘Deus me livre, amanhã nós voltamos pra buscar ele!’. (...) A folclorista conta que, enquanto o santo vai descendo rumo ao Antônio Dias, vários fiéis fazem questão de carregá-lo, sendo necessários mais de 12 homens para a tarefa. E, quando o santo volta, “a gente cutuca todo mundo do Pilar: ‘ó, nós vamos quebrar o galho d'ocês devolvendo ele, mas no ano que vem nós vamos ver se nós vamos ficar com ele! (risos)’.” , brinca Deolinda.
Arthur Ramos, ex-presidente da associação dos sineiros de Ouro Preto, parafraseou uma história contada por Dom Barroso, antigo pároco do Antônio Dias, para exemplificar o fato de que até entre os padres existia rixa. “Na Semana Santa mesmo - tinha um padre que era do Pilar, ele chamava Monsenhor João Castilho Barbosa e o padre do Antônio Dias chamava padre Antônio Gabriel de Carvalho. Sobe o Nosso Senhor dos Passos e ele para aqui na Praça e o povo do Antônio Dias pega o Santo e aí, nisso, esse padre do Pilar chegou e falou assim com o Padre Antônio Gabriel: ‘dessa roça pra baixo quem leva é você’. Então, assim, uma alfinetada também. Até entre eles tinha [rixa], até padre”.
Os sineiros jacubas e mocotós
Christian Dias, estudante de História e sineiro da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, no bairro Centro ( lado mocotó). Foto: Marcelo Gonçalves
A disputa entre os sineiros de ambos os lados é a manifestação da rixa que mais gera brigas, literalmente. Christian Dias, atualmente sineiro na Igreja do Carmo, contou que, quando iniciou no meio, em abril de 2007, havia fortes estranhamentos entre aqueles que tocavam os sinos no Antônio Dias e no Pilar: “Isso de certa forma dava certo, pois cada sineiro tinha seu lado”, completa.
No período de 2005 a 2007, Christian relata uma briga pesada entre os sineiros de ambos os lados, que presenciou quando ainda era coroinha da Paróquia do Pilar. “Um lado meio que começou a invadir o outro. O pessoal do Antônio Dias começou a ir no Pilar. Eu lembro, que já teve briga dos meninos pegar pedaço de pau e ir brigar com outro; já teve gente que saiu de braço quebrado dessas brigas por causa disso”.
Dada essa conjuntura de brigas e desavenças, no ano subsequente, houve a tentativa de criar uma associação dos sineiros de Ouro Preto, porém, por questões burocráticas, o grupo acabou não se concretizando. Em 2013, entretanto, a ideia foi retomada e Arthur Ramos, atual presidente do Zé Pereira, foi o primeiro a presidir a associação. Foram estabelecidas escalas para organizar os sineiros e as reuniões eram regulares, conta Christian. Entretanto, no final de 2014, devido aos desconfortos entre os sineiros jacubas e mocotós, o grupo começou a se dispersar e, em 2015, já estava totalmente desfeito. Arthur, explica, ainda, que “a associação terminou foi por causa dessa brigaiada de Antônio Dias com Pilar, porque na época eu lembro que eu até tava tentando fazer um intercâmbio, bota um pra tocar lá, o outro bota pra cá, pra tentar mesmo melhorar… que nada, menina, deu uma confusão…”
Praça do Antônio Dias e as duas principais e mais antigas ruas de acesso ao bairro . Foto: Carolina Lobo
A rixa entre jacubas e mocotós se faz mais uma das tantas histórias que compõem os mais de 300 anos da rica Ouro Preto. Veja mais sobre as curiosidades dessa disputa secular aqui: