A negligência foi mais uma etapa do processo de precarização do estado de saúde mental dos atingidos.
Por Sofia Carvalhido
Em 5 de novembro de 2022, o rompimento da Barragem de Fundão completará sete anos, o que pode parecer pouco para quem não vivenciou de perto tudo o que aconteceu. Contudo, para as vítimas do crime socioambiental ocorrido com uma barragem de rejeitos de minério das empresas Vale, BHP Billiton e Samarco, são 2.257 dias de descaso, negligência e imensurável sofrimento.
O rompimento da Barragem de Fundão, que atingiu com maior potência os distritos de Bento Rodrigues e Paracatu, em Mariana, além de outras localidades e municípios ao longo da calha do Rio Doce, de Minas Gerais até o litoral do Espírito Santo, causou inestimáveis danos ambientais, materiais e sociais. Mesmo após quase sete anos, os moradores das regiões afetadas continuam sofrendo com a negligência e a injustiça, sem o apoio psicológico adequado, os estigmas da tragédia se tornam incuráveis e, sem dúvidas, uma angústia gigantesca.
Pensando nisso, é importante pontuar que a tragédia causou, não somente prejuízos materiais, mas também danos de natureza psico-emocionais, traumas que raramente são envolvidos nas discussões sobre o desastre. Falar sobre saúde mental não é algo fácil, principalmente quando refere-se às vítimas de situações catastróficas, que por muito tempo têm que lidar com o peso do trauma sozinhas. Nessa reportagem, não será necessário falar sobre quem está certo ou errado - até porque, sabemos da verdade.
Perdidas para sempre
Cinco de novembro de 2015, o dia em que centenas de pessoas perderam uma parte de suas vidas, em que a lama tóxica assolou histórias e que o pesadelo dos moradores se personificou e irrompeu a realidade de todos no local.
Essa data é marcante para Graucilia Fernandes, de 49 anos, que morava em Bento Rodrigues, que conta um pouco sobre sua história durante e depois do rompimento da barragem: “Eu estava chegando de Mariana na hora que a barragem já tinha rompido e já estava inundando tudo. Foi muito triste ver o lugar onde nasci e cresci acabando daquele jeito. Na tragédia, eu perdi a minha neta de 5 anos e, até hoje, eu e minha família não nos recuperamos do trauma”.
Juntamente com a Comissão dos Atingidos, no último dia 3 de junho, aconteceu o lançamento do livro da Cáritas MG, em conjunto com a Comissão dos Atingidos da Barragem de Fundão, entitulado “O Direito das Comunidades Atingidas pela Mineração à Assistência Técnica Independente” e do museu virtual “Mariana: Território Atingido”, no auditório do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
Durante o lançamento, algumas vítimas que estavam presentes deram depoimentos emocionantes e carregados com muito sofrimento. “A família dos atingidos está em uma constante marcha à ré”, disse Luzia Queirós, uma das vítimas que conduziu a apresentação do projeto, ou seja, mesmo com todo o processo jurídico que vem acontecendo nos últimos anos, a vida dos atingidos não seguiu adiante, ficaram estagnados.
De acordo com a Fundação Renova, imediatamente após o rompimento da barragem, cerca de 60 profissionais da saúde foram contratados - dentre eles, médicos, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos e psiquiatras - sob a gestão de secretários municipais de Saúde e Desenvolvimento Social do município de Mariana, para atender a demanda dos atingidos, mas esse número não foi suficiente.
A pressão psicológica que os moradores da região de Bento Rodrigues e Paracatu sofriam graças à presença das mineradoras já era gigantesca, antes mesmo do desastre com a barragem. Foi o que contou um dos atingidos, Geraldo Agnaldo de Melo, durante o lançamento do livro da Cáritas. “A Samarco vem nos humilhando e calando nossa boca em nossa própria comunidade. O rompimento [da Barragem de Fundão] foi um estrondo… mas “estrondo” nós já vivíamos antes, com a presença da Samarco em nossas terras”.
Após o desastre-crime, esse problema se intensificou ao somar-se com o estresse pós-traumático, o pânico e a ansiedade com a qual tiveram que lidar sem o amparo necessário. Maria do Carmo, de 60 anos, era professora em Bento Rodrigues quando o rompimento da barragem aconteceu e conta sua experiência com o pós-tragédia, e como se sentiu negligenciada: “Eu tive depressão profunda e síndrome do pânico, fiquei mal, achei que eu ia morrer. Eu olhava no espelho e me sentia morta, me enxergava amarela, da cor da morte”. Ela conta que fez tratamento psiquiátrico durante quatro anos, mas que teve que lutar contra sua mente, sozinha.
Graucilia também relatou que, ainda no início, recebeu apoio psicológico, porém, logo foi deixada de lado, assim como outros moradores de Bento Rodrigues que também necessitavam desse auxílio. “Recebi ajuda somente no início; é uma dor que nunca vai passar. Cada vez que vêm as lembranças dói muito, o lugar onde eu morei nunca mais será o mesmo. Fomos esquecidos pela sociedade.”
De acordo com a obra da Cáritas, houve um grande aumento e agravamento no número de casos de depressão, ansiedade, estresse e insônia, após o crime, entre as pessoas atingidas. Além disso, vale a pena ressaltar que o consumo de remédios controlados, para o tratamento de doenças psicossociais, sofreu um salto na região, o que mostra como a população local adoeceu gravemente ao longo dos últimos sete anos.
Durante todos esses anos, todas as faixas etárias dos moradores atingidos tiveram que lidar com as consequências do rompimento. Muitas crianças e adolescentes, quando foram realocados para frequentar algumas escolas em Mariana, sofreram - e ainda sofrem - preconceito, exclusão e até mesmo bullying dos colegas de sala.
Com o intuito de “amenizar” a dor, a Escola Municipal de Bento Rodrigues, no bairro Vila do Carmo, em Mariana, foi criada para auxiliar os estudantes que sofriam dessa violência. Como se não bastasse a imensa perda que tiveram, foram perdendo espaço e, cada vez mais, autoestima e autoconfiança. Foi o que contou a professora Maria do Carmo, da Escola Municipal de Bento Rodrigues.“Quando fomos realocados, no começo, foi tudo bem, tudo maravilhoso, fomos recebidos com festas e boas-vindas calorosas. Mas depois de um tempo, começou o preconceito e o bullying. Eu sentia que não estava no meu lugar, meio perdida, sabe? Alguns pais fizeram até abaixo-assinado para nos tirarem de lá”.
Contracapa de um dos livros do Projeto “Bento: Passado, presente e futuro”, da Escola Municipal de Bento Rodrigues. | Sofia Carvalhido
O projeto “Bento: Passado, presente e futuro” foi criado no ano de 2016 e é realizado todo dia 5 de novembro, desde sua criação. Nessa data, os alunos do 4° ano são incentivados a contar suas memórias de Bento Rodrigues através de ilustrações e genuínas palavras.
Ilustração de um dos livros do projeto “Bento: Passado, presente e futuro”, da Escola Municipal de Bento Rodrigues. | Sofia Carvalhido
De acordo com a professora, a assistência psicológica para os estudantes esteve presente no início do pós-tragédia, porém, isso não durou muito. Com quatro ou cinco meses de atendimento, os psicólogos foram retirados do processo e os atingidos foram esquecidos pela sociedade e pelas empresas responsáveis, sendo deixados à mercê de uma realidade que até então não imaginavam vivenciar. “Eu precisava de ajuda, mas meus alunos também, e foi assim durante muito tempo”, reforçou a professora Maria do Carmo.
Sonhos destruídos, vidas interrompidas e infâncias roubadas pela lama tóxica, repleta de rejeitos de mineração, descaso e irresponsabilidade. Não foram só 19 pessoas que morreram na tragédia, a negligência matou tanto quanto a lama.
Capa de um dos livros do Projeto “Bento: Passado, presente e futuro”, da Escola Municipal de Bento Rodrigues. | Sofia Carvalhido