O tempo da seca e o tempo da chuva

A ausência da chuva causa tanto estragos quanto o excesso dela, como ocorreu no final de 2021, no Sul da Bahia; em Riacho de Santana, o período de estiagem de 2018 marca memórias da população.

Por: Mírian dos Santos.

Acesso à cidade de Riacho de Santana, durante o período da seca, no mês de setembro de 2021. Fonte: Mírian dos Santos.

Em outubro de 2018, a cidade de Riacho de Santana, localizada no interior do sertão baiano e a 720 quilômetros da capital Salvador, vivenciou uma das maiores estiagens na região. O período de chuvas que geralmente ocorre entre os meses de outubro e abril ainda não havia se iniciado, e com as poucas águas do período anterior, os cidadãos riachenses enfrentaram uma grave seca e uma crise hídrica. O clima predominante no Estado da Bahia é o tropical, com médias anuais de temperaturas elevadas e máximas acima dos 30º graus. No sertão, o clima é semiárido, com pluviosidade anual acumulada abaixo dos 800 milímetros. Assim, a estação chuvosa é irregular, com eventos de secas prolongadas no interior.

A professora Tatyana Di Lissandra Magalhães Neves, 48 anos, conta que o período de estiagem foi um momento muito difícil. “As pessoas ficaram quase que semanas inteiras sem ter água, às vezes ela chegava à meia-noite, e as pessoas acordavam para encher os baldes e galões”, ela completa, dizendo já estar acostumada a lidar com o período de seca. “Aqui só existem duas estações, o tempo das águas e o tempo da seca, e geralmente o tempo da seca prevalece. Nesse ano de 2018, o tempo da seca prevaleceu por mais tempo e as águas não vieram de forma nenhuma”, recorda.

Na sede do município, o impacto gerado pela seca foi maior. A cidade é abastecida pela barragem na comunidade da Santana, que foi construída para suprir os períodos extensos de estiagem na região, no entanto, nos anos anteriores ela não conseguiu acumular insumo suficiente, e com a seca, acabou esgotando seu conteúdo. O agricultor e agente comunitário de saúde, Marivaldo Rocha Machado, de 52 anos, vivenciou a crise hídrica na zona urbana e relembra como aconteceu. “Foi um grande sofrimento, muitas pessoas passaram necessidades, principalmente, a falta de água para beber, tomar banho e cozinhar, porque nem todo mundo tinha as caixas de captação da água, e quem tinha mais condições perfurava poços artesianos”, ele conta.

A aposentada Ana Carolina das Neves, 68 anos,  viúva e mãe de 13 filhos,   viveu a maior parte da sua vida na zona rural de Riacho, sobrevivendo da agricultura e da pecuária. Hoje, ela reside na comunidade riachense Jacaré, e conta que não foi tão afetada pela crise porque morava na comunidade de Lagoa de Baraúna, localizada cerca de 50 quilômetros da área urbana da cidade, e na época possuía caixa de água doada pelo governo, além de poços artesianos como reservatórios. “Não passamos falta de água, mas sabíamos da notícia de que a cidade estava sofrendo”, ela afirma.

Poços emergenciais 

A prefeitura da cidade adotou uma série de medidas para ajudar a população, como por exemplo, a perfuração e a locação de poços tubulares por um determinado período. O trabalho foi realizado em parceria com o Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE), e por conta do esgotamento financeiro e da impossibilidade de novos investimentos, foi feita uma série de perfuração de poços – de modo emergencial – acima da barragem, para conseguir uma água de melhor qualidade e suprir as necessidades básicas. Além disso, foi feita também, uma parceria com o município de Bom Jesus da Lapa, a 66,6 quilômetros de Riacho, buscando a obtenção de água para o consumo – beber e cozinhar –, além da compra, por metro cúbico, no SAAE de Bom Jesus da Lapa, em média, de 12 carros pipas por dia. 

O ex-prefeito de Riacho de Santana Alan Antônio Vieira (2016-2020) lembra como foi difícil enfrentar a crise hídrica, mesmo em uma região acostumada com a seca. “A maior dificuldade foi encontrar o recurso hídrico para colocar à disposição das pessoas: onde vamos buscar água? O que vamos fazer? Comprar água em outra cidade dificultou pois onerou o próprio SAAE e as próprias finanças da prefeitura, já que o município vinha enfrentando uma escassez de recursos, uma queda de receita, e uma queda de arrecadação”, contou

Para amenizar os impactos causados, a prefeitura buscou implantar nas comunidades rurais a cultura do umbu gigante – fruto agridoce tipicamente natural da semiárido brasileiro – em parceria com o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Baiano (IF Baiano), reforçou o viveiro de mudas do município e entregou para associações comunitárias, nas localidades com facilidade de produção e com o solo adequado. Na região da Serra, área que engloba as comunidades Gado Bravo, Cambaitó, Olho D'água da Serra, Soledade, Mata do Sapê, Barra do Rio do Ouro, Sambaíba, Rio do Tanque, Paul e Ingazeira, a gestão buscou melhorar a produção da mandioca e, também promoveu na cidade uma feira agropecuária, buscando estimular a economia dos pequenos e médios pecuaristas. Assim, foi feita também a abertura de aguadas coletivas e individuais (cacimbas, fontes ou poços) nas localidades onde a demanda por água na área rural é maior, tanto para abastecer o gado, quanto para consumo humano.

A professora Tatyana acompanhou a crise como residente na cidade, e lembra que passou dificuldades por não ter um sistema de captação de água. Ela critica as ações tomadas pela prefeitura para resolver a situação e também as mobilizações posteriores realizadas para evitar que uma nova crise hídrica aconteça. “Eu não vejo uma mobilização, a longo prazo, no sentido de resolver o problema da captação de água, a gente vê a abertura de poços artesianos que podem estar nos ajudando em uma visão imediatista da coisa, mas que futuramente pode estar causando sérios problemas no lençol freático”, afirma.

Escola

A falta de água afetou a população da área urbana que, mesmo acostumada a lidar com a seca, não possuía reservatórios e sistemas de captação em suas casas. A gestora do Colégio Estadual Sinésio Costa, Nilva Santana de Araújo Laranjeira, de 36 anos, rememora os dias de sofrimento com a escassez de água. “Eu me lembro que a escassez estava tão grande que ficava semanas sem chegar água na torneira, e aí foi um período muito complicado porque várias pessoas tiveram que comprar água de carros pipas em outras cidades, já que os poços artesianos urbanos não estavam tendo condições de abastecer a demanda. Então, foi um período muito complicado e a gente teve que economizar ao máximo”, conta.

O colégio Estadual, assim como todas as instituições e residências, no ano de 2018, foi afetado pela crise hídrica, e por exigir higienização e limpeza do espaço, e ainda fornecer merenda aos estudantes, um gasto que consome muita água, o impacto foi ainda maior. Dessa maneira, por conta da escassez de água houve dificuldades para preparar  a merenda, a higienização da escola foi reduzida, a jardinagem e as hortas cultivadas pelos alunos foram suspensas, e faltou água para o próprio consumo dos estudantes. “Foi muito difícil a gente ver pelo menos uma ou duas vezes na semana a caixa secar e ter que tomar medidas imediatas para resolver a questão, como, por exemplo, suspender a merenda, porque não tinha água para lavar a louça", conta. 

Além disso, também foi necessário que a instituição recorresse a ajuda de carros pipas, fornecidos pela prefeitura, para abastecer os reservatórios de consumo diário. Entretanto, Nilva relata que a água vinha salgada, visto que era de poços artesianos, assim, em muitos momentos os estudantes ficaram sem água para beber. “Os estudantes também tiveram que se adaptar e trazer a garrafinha de água de casa”, ela recorda.

Como consequência e necessidade de conscientizar os alunos sobre a importância da água, principalmente na região, a escola trabalhou diversos projetos, como, por exemplo, a semana do meio ambiente, no mês de junho. As atividades foram desenvolvidas pelos professores das áreas de humanas e ciências naturais, que propuseram uma temática voltada para a crise hídrica. Além disso, a escola tem uma proposta de projeto em andamento, que é a implantação de sistemas de captação dentro do colégio e também a perfuração de um poço artesiano. Nilva acredita que o sofrimento com a crise hídrica provocou mudanças nos estudantes. “A principal mudança foi no sentido de conscientização e de preservar esse bem tão precioso que a gente sabe que é tão escasso também", conta ela que acompanhou diretamente as dificuldades enfrentadas pelos alunos. 

Para ela, no momento não há nenhum risco de acontecer novamente uma crise provocada pela falta de água, mas se acontecer, Nilva acredita que a população irá sofrer. “Não temos um reservatório que seja capaz de abastecer a cidade como um todo, quando há falta de chuvas”, ela diz.

Memórias da chuva

Por conta dos grandes períodos de estiagem e das dificuldades enfrentadas pela falta de água, os poucos meses de chuva marcaram a população riachense, sendo relacionados a diferentes significados. A professora Tatyana, que desde a infância aprendeu a admirá-la, conta que seu coração até hoje se enche de alegria ao ver as águas caírem. “Ao ver as primeiras gotas de chuva caírem no solo é sempre um momento de muita festa para o sertanejo, e eu aprendi a festejar tomando banho de chuva", conta. "Nos últimos anos, pra mim, era quase que um ritual a chuva cair e eu me banhar nas águas, brincar na enxurrada mesmo depois de grande", desabafa.

Praça Monsenhor Tobias, no período de chuvas na cidade de Riacho de Santana, em novembro de 2021. Fonte: Mírian dos Santos.

Já para Marivaldo, a cidade já viveu momentos bem piores. “No ano de 1976, teve uma crise hídrica que foi bem maior que a de 2018. Naquela época, a gente não ouvia falar em poços artesianos e muito menos em carros pipas, a pecuária vivia numa situação pior, onde muitas pessoas precisaram derrubar pés de Juazeiros para alimentar o gado, mas ainda assim, muitos morreram”, afirma ele.

Para a professora Tatyana, a seca de 1939 marcou ainda mais a história do município. Em seu livro, “Memórias de Riacho de Santana”, que está em revisão para publicação, ela traz o relato da senhora Sá Rita, já falecida, no qual conta que, para sobreviver à seca, as pessoas arrancavam raízes de árvores de umbuzeiro para fazer beiju, assim, ralavam várias vezes para tirar o amargo, e depois usavam para matar a fome. 

Segundo dona Ana das Neves, essa foi a pior seca  da qual ouviu falar. "Naquele tempo, antigamente, quem não tinha caixa de reservatórios sofria. Minha mãe contava que a crise de 1939 foi um horror, porque eles passavam muita sede e fome, já que não tinham ajuda dos governos, e muito menos recursos para sobreviver, apenas a produção da roça".

Dona Ana se mudou da fazenda Pedra de fogo, no município de Monte Alto, para morar na comunidade de Lagoa de Baraúna, localidade da região do distrito de Lagunas, em 1989,  lembra que os primeiros meses foram de muito sofrimento por conta da falta de redes de abastecimento próximas à sua casa. “Ali, de primeiro, era um sofrimento, a gente pegava a água de beber era longe, dava cãibra no pescoço, porque a gente não tinha um carro de boi, então quem não tinha condições de comprar, carregava água na cabeça", conta.

Por terem vivido ou ouvido histórias difíceis por conta da falta de água, Tatyana, Dona Ana e Marivaldo atribuíram à água da chuva um valor muito importante. Tatyana aprendeu a amá-la. “Eu sou apaixonada pela chuva, ela me causa um deslumbramento fora do comum”, ela diz. Para dona Ana, é a vitamina da terra, sem ela nada se produz e não é possível alimentar a criação. Já Marivaldo, vê a chuva como a vida e, de acordo com ele, a água é um líquido insubstituível.

Acesso à cidade de Riacho de Santana, durante o período de chuvas no mês de novembro de 2021. Fonte: Mírian dos Santos.

Significações

Moradores de Riacho de Santana relataram, em vídeo, suas memórias acerca da chuva na cidade, e quais significados são atribuídos por eles ao fenômeno. As produções estão disponíveis na página @umamemoriafotografada na rede social Instagram. Em seu depoimento, a estudante Marizete Magalhães Oliveira, 16 anos, e residente na fazenda Lagoa do Buraco afirma, como cidadã riachense, ser a pessoa ideal para  falar sobre a importância da chuva. “A chuva quando cai em um solo riachense, quando cai em um solo nordestino, traz esperança no coração do agricultor. Água pra gente é vida, água pra gente é recomeço, água pra gente é solução. A água pra gente é tudo que necessitamos, é um pouco de tudo aquilo que nos fazem ser felizes”, relata.

Já para Maria Luiza Oliveira de Castro Cardoso, de 17 anos, que cresceu na cidade mas se mudou para a capital Salvador, em busca de uma qualidade melhor nos estudos, a chuva tem um significado positivo. “Quando vem a chuva é sempre uma sensação incrível de esperança, de novas perspectivas e de coisas boas que estão por vir. Porque sempre vem quando está um calor gigante, quando está tudo muito seco e a gente está realmente necessitando dela e isso sempre é algo muito positivo pra gente”, afirma.

No total, nove pessoas se voluntariaram a contribuir com as gravações, produzindo através de seus celulares relatos contendo no máximo um minuto. Para nortear as respostas, a atividade propôs que os participantes respondessem à pergunta: O que a chuva significa para você?. Assim, o prazo final para entrega do conteúdo terminou no dia 19 de novembro de 2021, culminando com a produção de um vídeo único e final, contendo todos os depoimentos. O trabalho se iniciou no dia 04 de novembro, foi coordenado por mim e fez parte de uma atividade desenvolvida para a disciplina de Mídia e Memória, do curso de jornalismo, na Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop).