O trem de Mariana: Será o fim da linha?

Com obras de revitalização dos trilhos e restauração do patrimônio paradas há quase três anos,
surge a incerteza se as atividades turísticas e culturais da Estação Parque retornarão

Por Rebeca Oliveira da Silva

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Estação Ferroviária de Mariana em reforma (2022). Foto: Rebeca Oliveira da Silva
Estação Ferroviária de Mariana em reforma (2022). Foto: Rebeca Oliveira da Silva

A travessia de trem de Mariana para Ouro Preto se tornou, ao longo dos anos, uma das principais atividades turísticas e culturais das cidades que fazem parte da Estrada Real. A Estação Ferroviária de Mariana, que mantém suas estruturas até hoje, tem grande valor patrimonial e histórico e guarda em seus acervos a memória que constrói o passado de Minas Gerais. Passado este guardado somente nas lembranças dos marianenses, que por conta do fechamento temporário da estação não revivem há anos a experiência do passeio de maria-fumaça e nem a história dos caminhos de ferro de sua cidade. Será que esse é o fim do trem de Mariana?

Há cerca de 10 anos, nas plataformas da Estação Ferroviária de Mariana, uma das mais importantes estações de trem de Minas Gerais, passageiros eram vistos por toda parte à espera da chegada da maria-fumaça. Marianenses e turistas se misturavam em um aglomerado de pessoas animadas que visitavam a famosa Estação Parque. Composta por um conjunto cultural que agrupa a Praça Lúdico-Musical, a Biblioteca da Estação, o Espaço Museográfico e os vagões fixos adaptados para atividades recreativas, a estação era um playground educativo para adultos e, principalmente, crianças.

 

Hoje, quando se passa em frente à entrada da estação, tudo o que se vê são suas portas fechadas, sua estrutura com andaimes e seu vagão estático nos trilhos. Infelizmente, com a chegada da pandemia em 2020 e a proliferação do vírus da Covid-19, a estação fechou por tempo indeterminado. De acordo com o site oficial da Vale, empresa mineradora multinacional brasileira responsável pelos passeios de trem, as atividades culturais e turísticas ficaram suspensas como medida preventiva. Daí em diante, se iniciaram as obras de restauração do prédio da estação, que ainda não foram concluídas. O que também impediu que as atividades culturais que divulgavam a história desse patrimônio fossem recuperadas.

 

Tirando a parte da pandemia, nada disso é novo para os moradores de Mariana. A estação já foi fechada algumas vezes e teve seus passeios e atividades interrompidas. Seja por conta de restaurações na estação ou por interesses econômicos, o fato é que não é a primeira vez que os marianenses e os turistas que visitam Mariana ficam sem aproveitar os bens culturais de sua cidade. Para relembrar um pouco dessa história, é necessário entender como a estação surgiu e para quais fins ela foi criada.

 

A história de uma estação
De acordo com o site “Estações Ferroviárias do Brasil”, escrito por Ralph Mennucci, bacharel em Química pela Universidade de São Paulo, sócio da Associação Brasileira de Preservação Ferroviária (ABPF) e autor do livro “Um dia o trem passou por aqui”, de 2001, a estação foi inaugurada em 1914. O objetivo era conectar as cidades de Ouro Preto e Rio de Janeiro, que na época era a capital federal. A primeira “versão” da estação funcionou até a década de 1980, quando foi abandonada por conta da falta de passageiros.

 

A estação em 1928. Foto: Max Vasconcellos
A estação em 1928. Foto: Max Vasconcellos

 

Esse abandono aconteceu por conta de mudanças bruscas na significação do trem e de suas utilidades. Na monografia “O ofício ferroviário do Trem Vale em Ouro Preto e Mariana: da ausência da valorização da profissão à sua importância para o patrimônio cultural”, publicada por Marina Izepan, formada em Turismo pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), é contada a história do trem desde sua ascensão ao seu declínio.

 

De acordo com as pesquisas de Marina, no início, a maria-fumaça passava pela ligação ferroviária levando cargas aos centros urbanos de Mariana e Ouro Preto. A locomotiva era símbolo de prosperidade e crescimento dessas cidades. Em um momento em que o ouro já não era mais tão valioso, o trem se tornou a materialização das mudanças socioculturais que revolucionaram a estrutura urbana da época.

 

A necessidade econômica da exportação de café levou a um aumento no número de vagões e melhorias nas ferrovias e nas respectivas estações. Tais melhorias trouxeram possibilidade de locomoção entre os municípios, e, assim, as linhas férreas passaram a ser também utilizadas para transporte de passageiros. É claro que essas melhorias sempre tinham interesses econômicos por trás, o que gerava grandes conflitos.

 

Além de questões econômicas, Marina ressalta que a ligação entre as cidades pelo trem proporcionava uma aproximação e um aumento na área de exploração e influência. Por isso se iniciaram algumas estratégias de promoção das viagens, através de visitas de políticos importantes da época como o presidente Epitácio Pessoa.

 

Estação de Mariana em 1922, quando da visita do Presidente da República Epitácio Pessoa. Foto: Acervo Arquivo Público Mineiro.
Estação Ferroviária de Mariana em 1922, quando da visita do presidente da república Epitássio Pessoa. Foto: Acervo Arquivo Público Mineiro 

 

Sobre essas promoções, uma curiosidade divulgada pelo site “Estações Ferroviárias do Brasil” mostra que no dia da inauguração do prolongamento do ramal de trilhos até Mariana aconteceu um acidente envolvendo dois mortos na linha férrea, que só foi manchete apenas alguns dias depois. A nota que saiu no jornal carioca ‘A Noite’, no dia 24 de junho de 1924, denunciou que a imprensa mineira tentou abafar o caso, como tentativa de manter a imagem intacta das atividades ali realizadas.

 

Depois do início da década de 1980, o crescimento das linhas férreas praticamente já não existia mais. Com as rodovias e as empresas automobilísticas ganhando espaço no cenário, o sistema ferroviário estagnou. Isso levou ao abandono e fechamento da Estação Ferroviária de Mariana, que só ganhou uma nova reforma em 2006, mais de 20 anos depois.

 

O Programa de Educação Patrimonial Trem da Vale

Em 2006, a Vale finalizou as obras de revitalização de 18km da ferrovia entre Mariana e Ouro Preto. A empresa também foi responsável pela reforma de quatro estações ferroviárias do percurso, uma delas a Estação Ferroviária de Mariana. Além disso, as locomotivas ganharam um design mais moderno, sem perder suas características originais.

 

Com todas essas novidades, também foi criado o Programa de Educação Patrimonial Trem da Vale, que esteve ativo de 2006 a 2015. Em seu site, a empresa destaca alguns dados estatísticos do programa como forma de mostrar resultados positivos. Estes dados foram descritos abaixo.

 

Infográfico: Dados Estatísticos Programa Educacional Trem da Vale

 

Em teoria, o projeto visava preservar a memória e a história de Mariana e Ouro Preto através da promoção de atividades culturais educativas. Mas de acordo com a professora de Administração da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Carolina Machado Saraiva, o programa não se institucionalizou em uma esfera cultural e educacional, mas sim como meio de propaganda da empresa. Os dados levantados acima, portanto, foram questionados.

 

As pesquisas, financiadas pela Pró-Reitoria de Pesquisa, Pós Graduação e Inovação da Universidade Federal de Ouro Preto (Proppi-Ufop), foram realizadas juntamente com Ingrid Anastácia de Souza e Rosany Cecília de Sena, ambas bacharéis em Administração pela UFOP. No artigo “A reificação da cultura: uma análise do Programa de Educação Patrimonial Trem da Vale sob a ótica da Indústria Cultural”, Carolina, Ingrid e Rosany procuraram evidenciar questões sobre a apropriação histórica e cultural de Mariana e Ouro Preto pelo programa. Na análise feita no artigo do documentário “Projeto Trem da Vale” é perceptível uma redução da complexidade histórica e a personalização do trem e suas memórias.

 

Em entrevista, Carolina disse que "o maior prejuízo é o entendimento de uma subsunção da história do trem, da ferrovia, que passa pela história de Mariana, à história de uma empresa. Também há um prejuízo no entendimento do patrimônio e da importância que a ferrovia tem pra cidade, e no próprio entendimento de cidadania”.

 

Além disso, ela ressaltou a importância do trem para a identidade cultural mineira. “Nós temos o trem em nossa linguagem! E hoje nós não temos mais o direito nem de usá-lo. Há uma perda no entendimento do que é ser mineiro, pois o uso do trem deve ser no sentido de usufruto da cultura, e não no sentido de consumo do bem cultural.”

 

Carolina destacou as estratégias de ‘marketing social’ na escolha do trecho de revitalização. Os 18km que receberam novos trilhos são exatamente os que se encontram próximos às cidades de Mariana e Ouro Preto, onde há um maior impacto econômico e ambiental. É um trecho que dá maior visibilidade e acesso aos municípios, além de ser um modo em que a empresa irá arrecadar através das atividades turísticas por conta da paisagem do local.

 

O resultado disso tudo é uma domesticação em relação à atitude das empresas. Elas utilizam, sobretudo, de argumentos racionais e emocionais para criar um ambiente favorável e próximo das pessoas. “As pessoas começam a fazer ligações positivas entre a marca e as ações culturais, que é extremamente nocivo, pois elas não têm noção que estão sendo subjugadas a um plano empresarial,” explicou Carolina.

 

O Programa de Educação Patrimonial Trem da Vale chegou ao fim em 2015, em um momento de crise financeira da mineradora. Entretanto, os passeios turísticos foram mantidos. E além disso, não houve nenhuma outra restauração por parte da empresa. O que mostra uma preocupação maior com a aquisição monetária do que com o projeto histórico e cultural do patrimônio ferroviário em si.

 

Nesse sentido, Carolina salientou a importância do papel da universidade pública na construção de uma consciência crítica dos cidadãos. Essa instituição deve conduzir projetos que desenvolvam o entendimento da cidadania e das noções sobre o que é ser um habitante de uma cidade minerária. “A universidade tem que, sobretudo, trabalhar para a população!”.

 

O Programa Circulatrilho

No dia 09 de outubro de 2015, a UFOP e representantes das Prefeituras e Câmaras de Ouro Preto e Mariana, da Vale S.A. e de pró-reitores da UFOP, decidiram colocar em prática o projeto do complexo Circulatrilho.

 

A reunião teve por objetivo firmar uma iniciativa que ajudasse milhares de pessoas a realizar eventos educacionais e culturais. Como universidade pública, a UFOP viu a necessidade de dar continuidade às suas atividades, a partir de um novo projeto, que deu origem ao Circulatrilho.

 

O programa se iniciou em 2016 como projeto de extensão da universidade e contava com diversos parceiros externos, como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), a Fundação de Arte de Ouro Preto (FAOP) e a Organização para a Cultura Ambiental (OCA).

 

De acordo com o site do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFOP, as atividades objetivavam dar à comunidade de Mariana a oportunidade de formação de leitores, de participação em atividades lúdico-educativas e culturais e formação continuada e musical. E também tinham o projeto de receber os turistas da cidade com uma programação cultural, que oferecia continuamente o acompanhamento e a proposição de ações educativas e musicais

 

As atividades nas áreas mencionadas foram oferecidas por meio de propostas elaboradas com os parceiros da Circulatrilho e reunia ações desenvolvidas na Estação Ferroviária de Mariana. Infelizmente, o programa também se encerrou com a pandemia e dependerá da reabertura da estação para voltar à atividade.

 

Como a população de Mariana se sente?

Quem conta um pouco da sua história é Adilson Bernardo. Nascido em Mariana e morador da cidade há mais de 20 anos, Adilson relatou em entrevista suas experiências na estação. Segundo ele, era um projeto social que apresentava ao público inúmeras novidades. “Pra quem faz o passeio pela primeira vez é muito bacana. Tem algumas cachoeiras, alguns túneis, mato de um lado e mato do outro. Podemos sair pra tirar foto e chegando lá tem até um tempo pra almoçar.”

 

Adilson Bernardo em frente à Estação Ferroviária de Mariana em reforma (2022). Foto: Rebeca Oliveira da Silva
Adilson Bernardo em frente à Estação Ferroviária de Mariana em reforma (2022). Foto: Rebeca Oliveira da Silva

 

Adilson conta que fez o passeio com seus netos algumas vezes e que, inclusive, visitou o museu que se encontra dentro da estação. Para ele, o fechamento do local e o encerramento das atividades turísticas e culturais deixa uma grande saudade. “Na área cultural faz falta, até porque as crianças gostam muito mais do que nós adultos. Eles ficam alegres, eles riem, eles brincam. Você se diverte fazendo a viagem e se diverte com as crianças.”

 

Adilson confessa que não é muito ligado à história, mas entende que o patrimônio histórico é o que garante a memória de um lugar. Por isso, ele pede que as obras de restauração sejam finalizadas logo. “Era bom se eles agilizassem mais essas obras. Eu percebo que muitas pessoas sentem falta e precisam disso. É um lazer importante que custa caro, mas que com uma parte filantrópica seria proporcionado às pessoas a oportunidade de poderem usufruir desse passeio que eu acho maravilhoso.”

 

E como fica a restauração, afinal?

Ao entrar em contato com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), com a Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Mariana, com a Prefeitura de Mariana e com a assessoria da Vale, não obtive respostas. Mas para explicar um pouco mais sobre as obras de revitalização e restauração, o técnico de segurança da Vale, Paulo Henrique Átila dos Santos, contou em entrevista sobre as experiências que viveu durante seu trabalho na Estação Ferroviária de Mariana.

 

Antes de se tornar técnico de segurança, Paulo chegou a operar a maria-fumaça e teve bastante contato com as atividades que eram realizadas na estação por meio da parceria entre Vale, UFOP e Prefeitura de Mariana. Ele conta que sempre foi apaixonado pelo trem, e quando as atividades foram paralisadas por conta da crise que a empresa vivenciou na época do Programa de Educação Patrimonial Trem da Vale, achou que o mesmo fosse acabar. “Foi aquele desespero total. Eu fazia a narração do passeio e, por isso, sempre vi o trem como uma questão cultural, uma história. Então, na hora que falaram que o trem poderia acabar, foi um baque.”

 

O trem não acabou e ele continua. E Paulo ressalta que não é porque houve um fechamento temporário da estação e suas atividades, que aconteceu um encerramento definitivo do espaço. “Hoje nós estamos revitalizando o trecho novamente para que seja possível restabelecer toda a parte operacional. E as estações também estão recebendo uma restauração mais precisa nas pinturas e partes de preservação histórica”.

Paulo diz que o retorno do trem proporciona uma aproximação da família e das crianças com o espaço. Segundo ele, as crianças, ao perderem esse contato com o trem e com a estação, perdem também uma referência de vida, de educação e de família. O espaço é muito mais do que só a preservação do patrimônio histórico e cultural da cidade, ele vira o lar de memórias das pessoas que ali frequentam.

O trem, nesse sentido, reforça a ideia de identidade. Como Paulo relata, "é um meio de garantir a infraestrutura de uma sociedade e perpetuar sua história”.

Veja imagens em vídeo da estação 9 anos atrás: https://youtu.be/S0ZRwGvOHwA

 

Confira o vídeo sobre o passeio: https://youtu.be/Jv7LQqHtaE8