Os desafios de ensinar em tempos de ausência

Os relatos de três professoras do ensino público de Ouro Branco que superaram as dificuldades e colecionaram aprendizados ao longo do período de ensino remoto

Por: Ian Cândido Pereira

Uma sala de aula vazia na Escola Municipal Geraldo Marino Vieira, durante o período de ensino remoto, em 2020 e 21.

Uma sala de aula vazia na Escola Municipal Geraldo Marino Vieira, durante o período de ensino remoto, em 2020 e 21. Foto: Prefeitura Municipal de Ouro Branco

No dia 17 de março de 2020, uma terça-feira, a professora Lindomar Vilaça de Oliveira Miranda trancou os portões da Escola Municipal Geraldo Marino Vieira, em Ouro Branco, Minas Gerais, pela última vez naquela semana. As aulas na escola haviam sido suspensas em função do crescente número de casos de infecção pelo novo coronavírus na cidade. Enquanto trancava os portões, Lindomar ouviu uma das serventes afirmar com invejável otimismo: “Segunda-feira, com a graça de Deus, estaremos aqui”. 

No entanto, o otimismo da servente jamais se confirmou: no dia 22 de março, entrou em vigor a Deliberação nº 18 do Comitê Extraordinário Covid-19 do Governo Estadual. O documento determinou a suspensão das atividades presenciais de educação escolar básica em todas as unidades da rede pública estadual de ensino por tempo indeterminado. As disposições da Deliberação nº 18 foram exercidas até a liberação para o retorno das atividades híbridas facultativas (parte dos alunos em regime presencial, parte em regime remoto) no dia 18 de agosto de 2021 e, finalmente, a liberação para o retorno total e obrigatório dos alunos no dia 3 de novembro de 2021 - 591 dias após o início da suspensão.

Neste ínterim, perguntas foram feitas em profusão: afinal, quais foram as dificuldades, as histórias e as lições enfrentadas, contadas e aprendidas pelos professores durante o período de ensino remoto?

As dificuldades

Das tantas palavras e expressões que podem definir a pandemia do novo coronavírus, uma delas é, sem dúvida, a expressão “sem precedentes”. Experientes ou iniciantes, os profissionais de educação foram pegos de surpresa por um evento crítico global sobre o qual ninguém possuía qualquer resposta concreta ou qualquer referência de comportamento. Diante disto, surgiu a necessidade de readaptação – um processo penoso e exaustivo para todos - que expôs professores e servidores a um desafio inédito: interagir e ensinar utilizando ferramentas digitais.

Em atividade no ensino público ourobranquense há 38 anos, a professora de português Maria Esther Nunes Ferreira Almeida, docente do 9º ano no Colégio Municipal Pio XII, conta que, para ela, a principal dificuldade imposta pelo regime de ensino remoto foi manter a dinâmica de comunicação entre aluno e professor. Baseadas principalmente em gravações pedagógicas disponibilizadas pelos professores aos alunos, por meio de um grupo de pais e professores criado no aplicativo WhatsApp, as aulas de português ministradas por Esther tiveram que ser totalmente reformuladas para se encaixar à nova realidade de seus alunos.

“A maioria dos nossos alunos não tem como ter aulas online. Então, eles assistiam às gravações, com as explicações, recebiam as atividades, às vezes avaliadas e contando a presença do aluno, feitas semanalmente. Houve muita dificuldade, porque muitos alunos nem tinham WhatsApp para receber as gravações e as atividades. Quanto às atividades, os alunos que não tinham condições de recebê-las ou imprimi-las vinham aqui [no colégio] e pegavam todas as atividades impressas”, contou Esther.

A professora relata, ainda, as dificuldades enfrentadas na aplicação do plano de ensino elaborado para o ano de 2020, que não pôde ser totalmente trabalhado por ela através do ensino remoto. “Eu achei muito difícil porque no princípio, então, você ficava com medo: ‘será que eles vão aprender essa matéria? Dentro de sala seria uma coisa, mas essa matéria eu acho que não vamos ter condição de ensinar [durante o ensino remoto]’ e muita coisa ficou até sem eles [os alunos] verem no ano passado por causa disso, da situação de achar que eles não iam dar conta, pela matéria ser mais avançada. Nós pegamos primeiro as matérias mais fáceis. Então, muita coisa que eles precisavam aprender, ficaram sem aprender. O tempo com a pandemia é diferenciado. Não pudemos aplicar o planejamento da melhor forma”, lamentou.

Enquanto isso, a professora Maria Beatriz Alves Moreira Rodrigues, 51, enfrentava outras dificuldades. Tia Bia, como passou a ser carinhosamente conhecida ao longo de seus 26 anos dedicados ao ensino público ourobranquense, revela que, a princípio, suas dificuldades foram impostas pela exigência do uso da tecnologia. Professora do ensino infantil de duas escolas municipais de Ouro Branco – Geraldo Marino Vieira e Fernando Félix de Souza – Bia diz que a experiência em sala de aula foi um fator de auxílio, pois, ao utilizar a câmera do celular para gravar as suas aulas, ela era a mesma Bia que se apresentava aos alunos antes da pandemia. 

As dificuldades, então, residiam em aspectos mais avançados da tecnologia para uma professora que se define como integrante da “velha escola do papel”: “Pra mim, essa foi a maior dificuldade, o não-domínio da tecnologia, porque eu precisava dos meus filhos. As ideias eram minhas, a cabeça é minha, mas a execução era toda deles. Então, as atividades, eles tinham que digitar pra mim, as provas, tudo tinha que ser feito por eles. O ato de ensinar não é diferente de antigamente, mas teve um acréscimo: precisávamos gravar vídeos, então, eu ia pra frente das câmeras e gravava, e pra isso eu necessitava muito mais deles do que antigamente quando eles só digitavam. Essa questão, tem professor que pega, coloca o celular no tripé e dá aula lindamente. Eu não domino isso.”

Outro fator de complicação para a rotina das profissionais de educação foi a alta demanda de aulas e exercícios semanais, que obrigou a coordenação da escola Geraldo Marino Vieira a realizar todas as preparações com muita antecedência a fim de enviá-las às pedagogas responsáveis. Sobre este processo, Bia revela: “nós tínhamos que nos preparar, era uma constante, fazíamos uma atividade e já estávamos elaborando outra para mandar para a pedagoga e deixar pronta para os pais pegarem na segunda feira, junto às aulas gravadas no grupo do WhatsApp”. Diante das dificuldades expostas, quando perguntada se o período remoto fora mais exaustivo se comparado ao ensino presencial, a resposta da professora foi categórica: “muito mais”.

O pátio vazio da Escola Municipal Geraldo Marino Vieira/Foto: Prefeitura Municipal de Ouro Branco

O pátio vazio da Escola Municipal Geraldo Marino Vieira/Foto: Prefeitura Municipal de Ouro Branco

As histórias

Antes de continuar lendo esta reportagem, permita-se fazer uma viagem de volta à infância. Mais precisamente, viaje de volta ao tempo em que você brincou de escolinha com os seus amigos e disputou com unhas e dentes o importantíssimo papel de professor. Aqui, no entanto, adaptaremos esta antiga brincadeira aos tempos modernos: imagine que você e os seus amigos estão brincando através de uma chamada de vídeo na internet, e tudo o que você consegue ver, além de seus nomes, são fileiras de ícones de diferentes cores exibindo as iniciais de cada participante. Você conseguiria se lembrar do rosto de todos os seus “alunos”?

Para a professora Bia, se lembrar do rosto dos alunos durante o período de ensino remoto foi um exercício que exigiu esforço. Ela conta que a ausência de seus alunos durante o longo período de aulas online  lhe causou desespero e angústia. “Eu entrei em parafuso. Eu nunca fiquei sem aluno”, disse a professora, emocionada. “Porque eu só me ausentei da sala de aula quando tive meus dois filhos. Eu apenas saí para cuidar das minhas duas crianças. Sair [da sala de aula física para a online] agora me impactou demais.”

Durante os quase dois anos de separação de suas turmas, a professora mandou mensagens para as mães de seus alunos solicitando fotografias dos rostos de cada uma das crianças para que suas feições não se apagassem de sua memória. Mas havia um porém: Bia conseguia se lembrar de todos os seus alunos, menos um – por acaso, o único aluno que não teve a fotografia enviada pela mãe. “Eu forçava a memória e não conseguia me lembrar dele. Um dia, triste da vida, eu subindo aqui [a rua da escola] e quem eu vejo? Ele! Eu chorei”, contou a professora, emocionada.

Para Lindomar, personagem que fechava os portões da escola Geraldo Marino Vieira na introdução desta reportagem, o artefato da experiência adquirida ao longo dos 26 anos de serviço no ensino público municipal não foi capaz de conter a emoção vivida dentro dos limites da escola, após a suspensão das aulas presenciais. Para a profissional, que durante o período de ensino remoto permaneceu na escola a fim de fornecer apoio pedagógico e administrativo aos colegas docentes, o primeiro mês de ausência dos alunos, em especial, foi o mais difícil.

“Pra gente que estava aqui na linha de frente, entrar na escola sem os alunos, o início, o primeiro mês, foi muito difícil. A gente entrava, a gente chorava, a gente se emocionava. Eu me lembro do dia que eu fui separar o material deles que havia ficado aqui, os cadernos, e eu me lembro que eu me emocionei muito; os cadernos novinhos, com os nomes, aquele capricho que os pais tinham preparado para o início do ano, e nós tivemos que separar para eles buscarem. Realmente afetou bastante a nossa parte emocional, a gente ficou muito abalada com essa ausência dos alunos”, frisou.

A reportagem tentou entrar em contato com a Secretaria Municipal de Educação a fim de apurar se a pasta promoveu medidas no sentido de fornecer suporte psicológico aos profissionais de educação do sistema de ensino público de Ouro Branco, mas não obteve retorno.

As lições

Se antes da pandemia a professora Bia pertencia à “velha escola do papel”, agora, ela pertence à nova escola da tecnologia. Pensando na volta às aulas, a professora se permitiu comprar um tablet para utilizar em suas lições. “Eu trago o tablet pra escola pra mostrar vídeos, música clássica, coisas que eles [os alunos] se interessam, coisas que aparecem na sala a gente pesquisa no YouTube, no Google, e eles veem, então, isso pra mim foi muito bom”, revela a professora, bem humorada. Refletindo sobre as lições aprendidas durante o período remoto, Bia conclui, dizendo: “temos que tirar de todas as experiências algo proveitoso. Para mim, ficar sem os alunos foi algo terrível, nunca passei por essa experiência, então, foi muito difícil. Mas pra minha pessoa, meu crescimento pessoal, eu fiquei muito feliz porque eu perdi aquela resistência horrorosa que eu tinha quanto à tecnologia.”

Com o suporte oferecido aos docentes, Lindomar afirma ter recebido vários relatos de professores que, tal como Bia, venceram a barreira da tecnologia, conseguiram se adaptar às salas de aula virtuais e, atualmente, utilizam meios digitais para enriquecer as aulas presenciais. “Algumas colegas que não sabiam enviar e-mail aprenderam a enviar, a salvar em PDF, a enviar de e-mail para WhatsApp, a digitar provas, que antes elas pagavam outras pessoas para digitar, então, assim, foi difícil, foi sofrido, mas teve aprendizado também”, revela a profissional.

O retorno

Embora curto, o reencontro entre alunos e professores foi celebrado pelos profissionais de educação. Sobre a experiência de dividir novamente a sala de aula com seus alunos, Esther reflete: “Hoje em dia, na sala, eles comentam: ‘professora, nós aprendemos muito pouca coisa [durante o ensino remoto], a diferença é muito grande’”. Quanto ao desafio que sempre acompanhou a atividade docente para manter a atenção dos alunos dentro de sala de aula, Esther percebeu transformações. “É impressionante como as coisas mudaram agora. Eles chegaram com uma vontade de aprender! Eu dou aula pra 9º ano, e agora tem mais isso [vontade de aprender] que o restante porque eles querem ir para o ensino médio, eles querem fazer a prova do IF (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia), então eles ficam mais interessados do que alunos de outras séries, eu acho que isso ajuda.”

Lindomar, por sua vez, destaca que “a escola não é um lugar onde se aprende apenas a ler e a escrever, mas também um espaço de socialização”. A profissional revelou que, durante o período de ensino remoto, houve relatos de crianças que desenvolveram quadros de ansiedade provocados pelo isolamento, evidenciando a importância do retorno dos alunos à escola.

2022 será, definitivamente, um ano de reencontros necessários.