Um sentimento. Muitas histórias.

Apenas no Brasil, foram mais de seiscentas mil mortes causadas pela pandemia da covid-19, ou seja, mais de seiscentos mil lutos vividos e mais de seiscentas mil histórias enterradas

 

Por: Beatriz Araujo de Oliveira

 

imagem ilustrativa: https://pixabay.com/pt/photos/velas-aceso-igreja-chama-religi%C3%A3o-2653200/?downloadEu saí do quarto para falar com minha mãe no dia 26 de novembro de 2020. Ela tinha acabado de terminar uma chamada quando se virou para mim. Os olhos marejados e boca trêmula entregaram tudo: meu avô havia morrido.


Seu Wilson teve um infarto silencioso, não é do tipo que se vê no teatro, quando a pessoa coloca a mão no peito e cai dramaticamente; é mais como um mal-estar ou um enjoo que não passa. Então meu pai, Marco Antônio, filho dele, o levou para fazer exames. A médica logo mandou internar. Algumas semanas depois, Marco foi a uma visita periódica e foi recebido por médicos que lhe deram a notícia do falecimento. Meu pai pegou o celular e ligou para a minha mãe.

A pior parte não foi ter que dar a notícia a minha irmã por telefone, já que ela estava em outra cidade. Ou contar para minha tia, precisar levá-la para casa e, durante o caminho, tentar acalmar sua crise de ansiedade tão forte que não conseguia fazer nada além de balbuciar poucas palavras e balançar a cabeça. Também não foi só sentir toda a dor do luto no meio da noite, por volta das três da manhã, abraçando a mim mesma e tentando não chorar muito alto. A pior parte, com certeza, foi ter que contar para minha avó, dona Edna, uma mulher de 73 anos que passou mais de 30 ao lado de seu Wilson.

 

Chegamos na casa daquela senhora, ela estava tomando café com leite e tinha um pedaço de pão mordido na mão. Levantou o olhar para nós e, esperta como é, balançou a cabeça entendendo tudo. Mesmo assim, disse: “Oi, tudo bem?”. Nós a levamos para a sala e a colocamos numa poltrona, eu fiquei ao lado, segurando seu braço. Vi minha avó esconder o rosto num pequeno guardanapo para chorar, se encolher toda e balançar as pernas algumas vezes, igual a uma criança que não sabe como expressar tristeza e
sente que precisa bater o pé. Mas, além do gesto, dona Edna não parecia em nada com uma criança, seu choro era o de uma mulher idosa que passara décadas ao lado do marido. Minha avó é uma das pessoas mais fortes que conheço, sempre a levei como exemplo e me apoiei em sua imagem. Porém, naquele dia, foi ela que se apoiou em mim.

Elizabete Correia Leite Ravazani também conheceu o marido ainda jovem, passou 36 anos casada com ele, mas não gosta de falar que o perdeu. “Perder é modo de dizer, né. Perdeu, mas não perdeu.” Por acreditar a religião kardecista, sentia medo do fato de ele não ter tido grande espiritualidade e temia que sofresse muito quando morresse: “A minha grande tristeza, assim, além da falta física, é saber que do outro lado ele ia passar muita dificuldade”.

Me despedi do meu avô no funeral. Porém, para algumas pessoas, o funeral não passa de um “até logo”. Esse é o caso de Beatriz de Oliveira Ferreira, uma jovem de 21 anos, budista. De acordo com as crenças dela, a morte não é nada além de uma fase para recarregar as energias antes de seguir para a próxima encarnação. É durante a morte que as memórias e as cargas negativas são apagadas e o espírito da pessoa é preparado para um novo corpo, uma nova casca.

Beatriz perdeu o primo em 2017. Ela cursava o 3o ano do Ensino Médio e se preparava para participar de uma peça da escola dali a alguns dias. Estava brigada com duas amigas por causa de um desentendimento anterior que envolvia os ingressos da plateia. Sua mãe ligou. A seriedade no tom de voz mostrava que havia algo de errado, disse que ia buscá-la. Beatriz perguntou o porquê disso tudo e a mãe contou. Aquele mesmo primo com quem dividira boa parte da infância, o mesmo que arranjava briga para saber quem iria brincar com o cavalo vermelho de borracha, aquele que brincava de piscina de bolinhas e assistia a tantos filmes junto dela havia falecido. Beatriz foi acolhida pelos professores e por aquelas amigas enquanto chorava no banheiro. Elas arrumaram sua mochila e ficaram ao seu lado até
que a mãe chegasse. Até hoje se sente grata pelas gentilezas que lhe foram concedidas.

 

“Já não fico mais tão triste pelo meu primo hoje, sei que vou ver ele de novo. Eu fico mais agradecida por termos nos conhecido.” Ela abre um sorriso e acrescenta: “Talvez a gente não seja primo na próxima vida, posso até voltar como tia dele!”

Letícia Colombo Lopes também acredita que a morte é um tempo de reflexão. Além de espírita, ela faz parte do grupo religioso chamado Mahikari e, de acordo com os ensinamentos que recebeu da família, ela sabe que a avó está em algum lugar estudando para se tornar uma alma mais evoluída. Acrescenta que a família evita colocar fotos dos falecidos em lugares muito expostos a fim de não remoer tanto as lembranças dessas pessoas: “É como se você tivesse concentrado em alguma coisa e alguém te chamasse. Se eu ficar vendo fotos da minha avó o tempo todo, eu vou chamar ela várias vezes e ela não vai conseguir estudar direito”.

Schaira Vitoria dos Santos perdeu a mãe aos 7 anos de idade e a filha de Marisa dos Santos Gomes tinha 11 anos quando faleceu. Durante a entrevista, Schaira conta que certa vez conversava com um amigo na calçada sobre o halloween, a mãe mandou entrar na casa e Schaira respondeu que a ela parecia uma bruxa, por isso recebeu uma chinelada. Ela relembra de várias memórias com carinho e às vezes vê a si mesma rindo sozinha.

Schaira relata que era muito nova para sofrer toda a carga do sentimento de luto naquela época e teve de lidar com as consequências anos depois, pois desenvolveu distúrbios alimentares, depressão profunda e crises de ansiedade. Ela começou a fazer terapia quando era criança, logo após a morte da mãe e do pai, porém foi só entender como esses problemas psicológicos estão relacionados à infância atualmente, quase 10 anos após o ocorrido. Fez catequese e crisma, mas hoje segue a Umbanda e o Candomblé, diz que a religião lhe deu forças para continuar por meio das rezas e das giras do terreiro: “A religião tem essa função, vamos dizer assim, de ajudar a pessoa
nesse processo doloroso”.

Já Marisa relembra de como a filha, Daniela, era animada, dançava ballet e tinha o costume de alegrar as pessoas a sua volta, até que um dia entrou em casa passando mal, depois parou de conversar e interagir. Aneurisma. Foi o que os médicos disseram para Marisa. Passaram-se oito dias até que Daniela não morresse, desencarnasse é o termo correto.

“Falei: Meu Deus, é um anjo que passou na nossa vida, que deixou o seu legado e eu vou continuar essa missão tão maravilhosa que eu gosto muito.” E então se emociona ao contar que fundou um centro religioso em homenagem à filha, nomeou-o de Lar Espírita Daniela Gomes. É lá que sua neta, Julia Gomes Weege, conheceu o espírito da tia. Julia conta que passava por uma época difícil na faculdade e que, mesmo não tendo conhecido Daniela em vida, a tia lhe deu apoio, afirmando que estaria na formatura, logo na primeira cadeira, assistindo-a ganhar o diploma: “E é engraçado que eu sinto falta dela, sabendo que ela tá do meu lado, mas eu não vejo ela”.