Memórias vivas: o papel da assessoria técnica independente em Mariana

Abstract:

Assessoria Técnica Independente: Uma luta dos atingidos

Por Bruno Oliveira, Lucas Menezes e Ludmila Souza

 

Inauguração do museu virtual e do livro. Foto de: Alexandre Coelho

“A comunidade era bem pequena e, pra mim, era como se todos fossem uma família só. Eu costumava pedir bênção para todos os moradores da comunidade e chamava todos de tio. Era bem agradável a convivência lá. Eu participava dos jogos de truco e dos encontros na cachoeira, nos finais de semana. Eu acho que viver na comunidade era mais seguro…”. O trecho do  depoimento é de uma jovem de 17 anos e está registrado no museu virtual “Mariana: Território Atingido“, iniciativa da Assessoria Técnica Independe dos Atingidos e Atingidas pelo rompimento da Barragem do Fundão em Mariana (MG), realizada pela Cáritas Brasileira Regional Minas Gerais, em um processo compartilhado com a Comissão de Atingidos.  O museu virtual, assim como o livro “O direito das comunidades atingidas pela mineração à Assessoria Técnica Independente”, foram lançados em junho, durante evento realizado no Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA), em Mariana. 

A socióloga e coordenadora da Assessoria Técnica Independente (ATI), Laís Jabace, explicou que “Mariana inaugurou, no cenário atual, a conquista do direito, neste município, apesar de o rompimento afetar toda a Bacia do Rio Doce, de ter uma assessoria técnica instituída em um acordo firmado dentro da ação civil-pública com o Ministério Público e as empresas". Assim, a Cáritas surge como Assessoria Técnica Independente (ATI) aos atingidos do município de  Mariana  pelo rompimento da barragem do Fundão. Segundo a socióloga, a Cáritas já atuava como voluntária nos territórios atingidos pelo desastre e, em outubro de 2016, os atingidos conquistaram o direito da instituição ser a responsável pela ATI  e pelos seus cadastros,  como  forma de contrastar as ações da Fundação Renova criada pela Samarco para cadastrar os atingidos e decidir a quem, o que, com quanto e como seriam as indenizações. A reparação de danos proposta pela Fundação não levava em consideração o valor da terra nua, ou seja, os imóveis afetados que não permitiam atividade rurais, além de não ter participação das pessoas atingidas no processo decisório. Esses valores foram confrontados pela ATI, sendo a participação dos lesados e a restituição de perdas imateriais as principais diretrizes de seu processo reparatório.

Projetos como o museu virtual e o livro lançados pela Cáritas são importantes para o resgate das memórias das pessoas atingidas pela lama do rompimento da barragem do Fundão. Os estragos causados, para além dos danos materiais, a perda dos modos de vida dessas pessoas, a devastação de seus espaços e, até mesmo a morte de entes queridos, remetem a um passado que ainda é muito doloroso para muitos. O depoimento de uma criança de 10 anos, registrado no museu virtual, atesta: “Sinto falta da liberdade, de poder fazer tudo o que podia. Saía mais com meus primos do que hoje em dia; o jeito de brincar com meus primos em Mariana é diferente de quando a gente estava em Paracatu de Cima, pela falta de espaço e de liberdade".

Para a garantia integral da reparação dos danos, além dos reassentamentos e indenizações de perdas materiais, são necessárias medidas de preservação e/ou restauro da memória, honra e cultura dos afetados, bem como, a reabilitação social e mental deles. São esses os valores adotados pela ATI para a realização da matriz de danos em contraste com a matriz adotada pela Fundação Renova. Nesse sentido, a assessora técnica e coordenadora executiva do museu virtual, Paula Zanardi,  explica o cuidado com que é realizado o trabalho da ATI.  “De alguma forma, a gente tem que conseguir fazer com que todos os trabalhos que são muito importantes de serem desenvolvidos - porque ainda existe essa luta pela conquista dos direitos -, eles têm que ser feitos com muito cuidado, com muito respeito e com muito zelo por essas famílias que já passaram por muitas coisas”. 

Luzia Queiroz no lançamento do livro e do museu virtual.  Foto de: Alexandre Coelho 

Durante o lançamento dos projetos,a atingida e membro da ATI, Luzia Queiroz, enfatizou que o evento foi de reafirmação da luta daqueles que reivindicam seus direitos básicos. A realização do museu virtual temático consistiu no mapeamento dos territórios atingidos pela lama do rompimento da barragem de Fundão no município de Mariana, com a ideia de mostrar para as pessoas como eram as áreas antes do crime e os elementos que existiam nesses.  Foram utilizados, em grande parte do projeto, os dados primários, produzidos no processo de cadastramento das 1503 famílias registradas pela ATI que compõem a ideia da museologia de curadoria compartilhada. Os conteúdos ali presentes foram produzidos pelos assessores que criaram esse museu, mas também em uma escuta atenta, um processo compartilhado com a Comissão de Atingidos e os dados já obtidos nesse processo inicial de cadastramento. Foi preciso olhar novamente para isso tudo e ver os danos compartilhados, os danos de toda uma comunidade, afirmou Zanardi.

O livro “O direito das comunidades atingidas pela mineração à Assessoria Técnica Independente”, iniciativa da Cáritas, revela o crescimento, nos últimos anos, das ATI 's - relacionado a processos judiciais e extrajudiciais nós territórios atingidos pelo desastre da mineração - onde cada caso possui sua própria especificidade para que ocorra aquela assessoria naquele local. A obra conta tanto com depoimentos de atingidos quanto outras assessorias convidadas, trazendo vários relatos com o objetivo de promover uma reflexão mais consistente e uma possibilidade de organização maior entre essas iniciativas.

Apesar de todos esses trabalhos, ainda há muito o que ser feito para que atingidos e atingidas tenham seus direitos e sua integridade restaurados. Os trabalhos feitos pela ATI ainda precisam de mais força. “Nossa matriz (de danos) não é minimamente considerada durante as negociações extrajudiciais, e ainda estamos esperando para ver como vão ser os resultados dos processos judiciais”, explica Laís Jabace.